domingo, 20 de março de 2016

A hipocrisia no país da boca limpa






Após a divulgação das controversas escutas telefônicas promovidas pelo juiz Sérgio Moro, vimos surgir nas redes sociais, em programas de rádio e TV, ou mesmo em conversas entre amigos, uma atitude de surpresa diante do vocabulário utilizado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Como poderia um ex-presidente falar tantos palavrões ou usar tantos termos de calão em suas conversas? Um verdadeiro absurdo, segundo o espanto das pessoas.

Esqueceram que ali estava o Lula cidadão comum, em conversas particulares com pessoas próximas. Trataram a fala do ex-presidente como um pronunciamento oficial. “Estamos vendo agora quem ele realmente é”, disseram alguns desses comentaristas, surpreso muito mais pela forma do que pelo conteúdo dos diálogos. Certamente, são pessoas que não xingam no seu dia a dia e por isso se surpreenderam com as divulgações. São pessoas que jamais seriam chamadas de “boca suja”.


Interessante a relação que se pode fazer com outro evento. Só que esse, público e de alcance mundial. Trata-se da abertura da Copa do Mundo, no ano de 2014, aqui no Brasil. A torcida, formada em sua imensa maioria por pessoas de boa posição econômica e social, mandou em alto e bom som a presidente Dilma, que naquele ato representava o país, “ir tomar no c...”. É irônico que naquele momento, esse ato grosseiro tenha sido tratado por muitos como natural e um exemplo da liberdade da expressão das pessoas. E agora, provavelmente muitas dessas pessoas, condenem Lula por seu vocabulário numa ligação reservada.

Não entrarei no mérito do teor dos grampos realizados. Mas a hipocrisia no país da boca limpa sem dúvida merece uma análise mais detalhada. O que provoca o assombro realmente é o teor das palavras ou a vontade de condenar aquele que as profere? Fica a reflexão.

sábado, 5 de março de 2016

JK e Lula




Era o período da Ditadura Militar. Em 1964, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento, sob a forte pressão daqueles que reprimiram o povo brasileiro por 25 anos.  Período de exceção, a legislação vigente ficava em segundo ou terceiro plano. A força era o que valia e, certamente, o medo de um líder popular como JK retornar ao maior posto da República se tornava o principal ou único motivo.

Eis que a pouco menos de um mês de completar 52 anos, vemos a força sobrepujando os conceitos democráticos e de garantias ao cidadão que pareciam sedimentados pela Constituição de 1988 e toda Legislação vigente. Num espetáculo que visou muito mais à humilhação do que a qualquer critério jurídico, novamente um ex-presidente, líder popular e com pretensões a retornar ao cargo é conduzido coercitivamente para prestar depoimento, tal qual ocorrera quando da instalação do período ditatorial.

Ressalte-se que não estavam presentes as condições que normalmente antecedem a adoção dessa medida de força. De certa forma comum em nosso país, a condução coercitiva é  adotada quando aquele que é intimado a comparecer perante a autoridade judiciária não se apresenta, parecendo obstruir os trabalhos da Justiça. É fato notório que não é o caso. O ex-presidente Lula sempre que convocado, compareceu e prestou os devidos esclarecimentos. Por isso toda a estranheza que tomou conta da comunidade jurídica, fazendo até ministros do STF e ex-ministros da Justiça se mostrarem perplexos com a adoção de tal medida. 

Óbvio que o ex-presidente não deve ter um tratamento diferenciado e ser tratado como um cidadão comum. Mas isso para o bem e para o mal. Se não deve ter regalias, também não deve ser tratado como um inimigo de todo o sistema. Pelo contrário. Se não é um cargo público, a imagem de ex-presidente deve sim ser preservada e respeitada. E não servir como símbolo da arrogância e prepotência de alguns que querem utilizar os instrumentos legais para direcionar o futuro político de nosso país, já mirando as eleições presidências de 2018.

Pois parece que o tiro saiu pela culatra. O que antes adormecia, acordou, diante da arbitrariedade cometida. E se antes uma candidatura se mostrava apenas possível, agora está mais forte do que nunca, com as manifestações de apoio popular por todos os cantos do Brasil. O primeiro ex-presidente levado à força num período democrático poderá tentar o seu retorno. Isso se não cometerem outros atos de agressão aos seus direitos como os que ocorreram nesse dia 04 de março.