sexta-feira, 9 de setembro de 2011

"Escarra nessa boca que te beija!"


“ESCARRA NESSA BOCA QUE TE BEIJA!” – por Moacir Poconé

O título dessa postagem é o último verso da famosa poesia do grande poeta paraibano Augusto dos Anjos chamada “Versos íntimos”. Reproduzo-a para melhor entendimento do que tratarei.


Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Sempre percebo das pessoas ao ouvirem esse soneto reações de nojo, de ojeriza. Óbvio que tal reação se inicia na terceira estrofe e aumenta na última quando o poeta opõe e ao mesmo tempo coloca frente a frente o beijo e o escarro. Ainda hoje, em pleno século XXI, as palavras fortes e incisivas de Augusto dos Anjos provocam estranheza e repugnância aos que as ouvem. Certamente, acostumados com palavras mais doces e poéticos nas poesias que leem (se é que leem alguma coisa).

Mas o assunto principal dessa postagem não é Augusto dos Anjos e muito menos a reação daqueles que o leem. Quero falar é do teor dessa poesia, que, escrito ainda no início do século passado, parece retratar os dias de hoje ou as pessoas que nos rodeiam. Afagos, elogios, admiração, tudo esconde um manto escuro que é o da inveja e da falsidade. O poeta nos mostra isso desde o início. O personagem com quem fala já não tem amigos. A ingratidão aparece na primeira estrofe como a única que está a seu lado, “a companheira inseparável”. E todos os desejos estão enterrados. Que deve ele fazer então?

É dada uma receita a partir da segunda estrofe. Primeiro, acostumar-se à lama. Depois, virar uma fera. Afinal, moramos entre feras. E não há espaços para piedade ou misericórdia. Qualquer ato que se pareça com tal, na verdade esconde algo terrível por trás dele próprio. É o que diz o primeiro terceto. Aquele que beija, em breve escarrará; aquele que afaga, em breve apedrejará.

No gran finale, a indicação fatal: faça com o outro o que em breve ele fará consigo. A falsidade se esconde sob diversas formas, muitas delas parecidas com carinho, compreensão ou amizade. Desconfiar de todos e agir severamente, de modo racional deve ser sempre o melhor caminho. Ninguém faz nada a não ser por interesse, seja ele qual for, tenha o objetivo que seja. É preciso acabar com o inimigo antes que nós mesmos sejamos a vítima. Lutar, antes de mais nada, contra convicções interiores que mais afundam do que nos levantam. Para que, no fim, não nos identifiquemos com os versos de Eterna Mágoa do mesmo poeta:

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

2 comentários:

  1. Que bela postagem, pensador. Um tanto profunda, triste, mas verdadeira. O poema atemporal, como bem foi colocado no texto, é uma verdade que assola a nossa vida. Os versos são tão profundos que num certo momento é possível até sentir arrependimento do bem que já fora feito.
    Nos resta apenas saber que nenhum ser humano é mesmo confiável. Mas sem querer exortar os leitores para este ou aquele caminho, vale ainda uma observação: o ser humano é por natureza dual, o que poderia certamente justiifcar o fato de que se se alguém nos escarra à boca é porque também a maõ que lhe afagara, agora o apedreja, infelizmente um círculo vicioso gerador de decepções e frustrações infinitas. Necessidade de também ser fera.
    Mas talvez ainda valha a pena acreditar. Ser fera sim, mas quedar-se a viver o que o outro tem de melhor não seria o mais correto. Muitas atitudes do ser humano, dependendo do contexto, são justificáveis, em alguns casos, alguns nos jogam à lama de uma maneira tão sórdida como sendo a liberdade necessária. O mal às vezes é um símbolo da liberdade de uma prisão a que estamos condenados. O importante é saber discernir, para que, como diziam os versos de Mário de Sá Carneiro, não sejamos a ponte do tédio que vai de nós até o outro.
    O poema abaixo de Olavo BIlac bem ilustra esse dualismo a que nos submetemos e que nos leva a sermos tao perversos, até emsmo com aqueles a quem algum dia amamos. O poema ilustra muito bem, que todos nós temos dentro da gente o bem e o mal...Esse dualismo reside em nós e quem vai falar mais alto é aquele mal ou aquela virtude a quem dermos, mais forças.

    Dualismo

    Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
    Vives ansiando, em maldições e preces,
    Como se, a arder, no coração tivesses
    O tumulto e o clamor de um largo oceano.

    Pobre, no bem como no mal, padeces;
    E, rolando num vórtice vesano,
    Oscilas entre a crença e o desengano,
    Entre esperanças e desinteresses.

    Capaz de horrores e de ações sublimes,
    Não ficas das virtudes satisfeito,
    Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

    E, no perpétuo ideal que te devora,
    Residem juntamente no teu peito
    Um demônio que ruge e um deus que chora.

    Olavo Bilac

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  2. Muito obrigado pelo comentário, muito pontual e coerente ao assunto tratado.
    Faltou apenas a identificação do autor.
    Mas participe sempre, de todo modo.
    Moacir Poconé

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